Não suportamos nem mais um pouquinho

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LARINA ROSA

A notícia percorreu o país inteiro e embrulhou o estômago de muita gente nesta semana: uma juíza foi cúmplice do horror de impedir que uma criança de 11 anos, grávida vítima de estupro fizesse um aborto legal. Graças à imprensa que divulgou o absurdo e comoveu juristas na condução do caso, o desfecho foi outro.

Para quem não sabe o que houve em maio a mãe e a filha de 10 anos grávida depois de ser vítima de estupro, procuraram o Hospital Universitário de Santa Catarina (SC) para tentar fazer um aborto legal. A mãe foi ao hospital dois dias depois da descoberta da gravidez da menina, mas o aborto foi negado. A resposta do hospital foi que o procedimento só é feito sem autorização judicial até as 20 semanas de gestação e a menina estava com 22 semanas e dois dias.

A menina foi encaminhada a um abrigo com a justificativa de ficar longe do agressor. No local afastada da mãe a juíza responsável pelo caso induziu a criança a não realizar o aborto legal, questionando se a criança “suportaria mais um pouquinho” a gestação, para que fosse possibilitada uma adoção.

Tudo nessa história é uma série de horror. Uma criança foi estuprada, logo depois foi afastada da mãe para ficar longe do suspeito de realizar a violência sexual que provavelmente é um membro ou amigo da família. 85% dos casos de estupro são feitos por conhecidos da vítima, a maioria desses crimes acontecem dentro da própria casa, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

No abrigo isolada da mãe, a menina foi torturada através de depoimentos com requintes de crueldade para continuar a gravidez. Me pergunto que tempos são esses onde uma criança que foi estuprada tem que responder durante o depoimento perguntas como: “Você acha que o pai concordaria com a doação? Ou “Você já escolheu o nome do bebê?”por uma juíza. O pior é que essa crueldade sem tamanho veio de mulheres que não se permitem se colocarem no lugar daquela criança ou daquela mãe, talvez pela religião, ou por falta de capacidade de assumir o cargo, elas seguem reproduzindo violência.

Parece um paralelo com a série O Conto da Aia onde as esposas se submetem outras mulheres a serem estupradas por seus maridos para que elas engravidassem em nome da igreja. Meu questionamento é o mesmo da série: a felicidade de um casal adotivo vale o trauma de uma criança de 11 anos?

Defendo que mulheres conquistem lugares de poder para vencerem a estrutura patriarcal que nos oprime, para que as nossas pautas também sejam atendidas. Mas é preciso estar atentas para não continuarem permitindo a manutenção violenta de mulheres e meninas. Sabemos que temas como este é resultado do machismo estrutural, já que se o homem engravidasse esse assunto já estaria resolvido e nenhuma outra criança estaria passando por tamanho tormento.

Depois da matéria publicada e do jornalismo bem feito, a desembargadora autorizou a menina a voltar para a casa depois de 40 dias no abrigo. A corregedoria do MP e TJSC abriram uma investigação para averiguar a conduta da promotora e juíza do caso. Já o MPF instaurou um inquérito sobre a recusa do Hospital em realizar o aborto legal e recomenda que o local faça o procedimento na criança. Já a juíza deixou o caso e recebeu uma promoção.

Mesmo com desfecho do caso o embrulho no estômago continua, porque não suportamos nem mais um pouquinho casos como esse onde a juíza é beneficiada depois que o trauma de uma criança já foi feito. Do estuprador principal causador dessa barbárie, não ouvimos mais falar. E o medo de sermos a próxima persiste.

A autora é jornalista

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