Por Joel Elias
A política brasileira testemunhou, nesta semana, uma das transformações mais constrangedoras da história republicana nacional. O homem que um dia se apresentava como o salvador da pátria, que ameaçava instituições, desafiava outros poderes e bradava contra o mundo inteiro com a arrogância de quem se julgava intocável, hoje se arrasta pelos corredores da Justiça pedindo perdão e clemência. A metamorfose de Jair Bolsonaro, de leão rugidor a gatinho miando por leite, não é apenas um espetáculo político degradante, mas um retrato cruel de como o poder pode transformar tanto aqueles que o exercem quanto aqueles que nele acreditam cegamente.
A mudança de postura foi tão dramática quanto reveladora. O homem que se orgulhava de nunca pedir desculpas, que fazia do enfrentamento institucional sua marca registrada e que diariamente destilava ameaças contra poderes constituídos, agora se rebaixa publicamente reconhecendo que mentiu deliberadamente para manipular eleitores. Esta confissão, feita em tom lacrimoso durante interrogatório judicial, expôs a falsidade de anos de retórica inflamada, e também o profundo desprezo que nutria pelos próprios apoiadores. O mesmo líder que os mobilizava com teorias conspiratórias e os enviava às ruas em manifestações cada vez mais extremas agora os descarta como pessoas desequilibradas e dignas de pena.
A traição aos seguidores assume proporções épicas quando se considera que muitos arriscaram patrimônio, relacionamentos familiares e até mesmo a liberdade em nome das mentiras que agora são descaradamente admitidas. Enquanto o ex-presidente negocia sua sobrevivência jurídica, aqueles que acreditaram em suas palavras — muitos deles hoje presos — se veem abandonados como peças descartáveis de um jogo político que nunca compreenderam completamente. Esta é talvez a lição mais cruel sobre populismo autoritário: a rapidez com que líderes desta estirpe abandonam seus seguidores quando a pressão aumenta, revelando que os consideravam meros instrumentos para seus projetos pessoais de poder.
O episódio também levanta questões inquietantes sobre o estado da racionalidade coletiva nacional. Como explicar que milhares de pessoas acreditaram que cantar hinos patrióticos para pneus de caminhão teria algum efeito político significativo? Como compreender que cidadãos aparentemente educados depositaram suas esperanças na intervenção extraterrestre, chegando ao ponto de colocar aparelhos celulares na testa para estabelecer contato com alienígenas que impediriam a posse de um presidente legitimamente eleito? Estes comportamentos bizarros não podem ser simplesmente ignorados como excentricidades isoladas, pois revelam algo profundamente perturbador sobre o nível de manipulação psicológica a que foram submetidas grandes parcelas da população brasileira.
A construção desta realidade paralela não foi obra de um único homem, mas resultado de um sistema complexo que envolveu plataformas digitais, influenciadores pagos e uma rede de desinformação que se alimentava da polarização social. Bolsonaro soube como poucos explorar algoritmos de redes sociais que amplificavam conteúdos extremos, transformando frustrações legítimas em combustível para teorias conspiratórias cada vez mais absurdas. A responsabilidade individual dos seguidores existe, mas não pode obscurecer o fato de que foram vítimas de uma manipulação industrial, planejada e executada com métodos que beiram a lavagem cerebral coletiva.
O impacto dessa súbita mudança de comportamento no campo político conservador tem sido devastador, criando uma crise existencial entre aqueles que construíram suas identidades políticas em torno da figura do ex-presidente. Muitos se encontram em um dilema psicológico complexo: reconhecer que foram enganados significaria admitir anos de decisões equivocadas, brigas familiares desnecessárias e posicionamentos extremos baseados em mentiras. Para evitar essa dolorosa tomada de consciência, muitos preferem racionalizar a situação com argumentos que relativizam a traição, alegando que “todos os políticos fazem isso” ou que “o importante é a causa, não a pessoa”.
Essa tentativa de normalização é profundamente equivocada e perigosa. Embora a política sempre tenha envolvido compromissos e mudanças de posição, raramente se viu um líder trair seus seguidores de forma tão explícita e calculada. A diferença não é apenas de grau, mas de natureza: enquanto políticos tradicionais podem decepcionar por incompetência ou mudança de circunstâncias, Bolsonaro revelou ter construído conscientemente uma narrativa falsa para manipular milhões de pessoas. Esta distinção é fundamental para compreender a gravidade do que aconteceu e evitar que fenômenos similares se repitam no futuro.
As cicatrizes deixadas por este período de radicalização artificial continuarão sangrando por anos na sociedade brasileira. Famílias permanecerão divididas, amizades de décadas foram destruídas e comunidades inteiras se fragmentaram por causa de divergências políticas baseadas em premissas falsas. O custo social dessa manipulação em massa ainda está sendo calculado, mas já se pode afirmar que representa uma das maiores tragédias da história recente do país. Milhões de brasileiros precisarão reconstruir relacionamentos pessoais destroçados por uma polarização artificial, alimentada por alguém que agora admite ter mentido deliberadamente.
A atual submissão do ex-presidente diante da Justiça não deve ser celebrada como vitória democrática definitiva, mas compreendida como um alerta sobre a fragilidade de nossas instituições e da própria sociedade. Um indivíduo sem qualquer qualificação moral ou intelectual diferenciada conseguiu chegar ao poder máximo da República e quase destruir o país por dentro. Este fato não pode ser tratado como acidente histórico, mas como sintoma de problemas estruturais que permanecem sem solução: deficiências educacionais crônicas, desigualdades sociais abissais e um ambiente de comunicação dominado por algoritmos que favorecem o extremismo. Enquanto essas questões não forem enfrentadas com seriedade, o país permanecerá vulnerável ao surgimento de novos demagogos dispostos a explorar os mesmos mecanismos de manipulação que se mostraram tão eficazes para Bolsonaro.
- O autor é jornalista