A Polícia Federal está investigando o uso de terras no Acre e no Amazonas como lavagem de dinheiro para uma das maiores facções criminosas do mundo: o Comando Vermelho. O registro seria inédito no Brasil, mas faria parte de um projeto de sofisticação dos métodos de dar aparência lícita ao dinheiro do narcotráfico.
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De acordo com fontes ouvidas pelo ac24horas na Polícia Federal e no ICMBio, a investigação indica que parte dos produtores rurais e fazendeiros das regiões entre Boca do Acre e Lábrea, no Amazonas, e mais recentemente na Reserva Extrativista Chico Mendes, foram cooptados pelo crime organizado para ajudar a dar aparência lícita ao dinheiro da venda de drogas, assaltos a banco, e outros crimes graves, a partir da venda de gado fictício.
A venda de gado fictício, conhecida como “gado de papel” ou “boi de papel”, é uma técnica usada para lavagem de dinheiro, especialmente em regiões com forte vocação agropecuária. O esquema é complexo, exige falsificação de documentos e, por vezes, pagamento propina a agentes públicos, funcionando assim:
Criação de saldo fictício: O criminoso declara possuir um número de cabeças de gado maior do que realmente tem (ou inexistente) em sua propriedade, registrando esse saldo em sua Ficha Sanitária junto a órgãos de defesa agropecuária. Isso ocorre, por exemplo, durante a campanha de vacinação contra aftosa, quando o proprietário atualiza os dados.
Falsificação de documentos: Com o saldo fictício registrado, o agente obtém documentos como notas fiscais, Guias de Transporte Animal (GTA) e comprovantes de compra de vacinas. Esses documentos criam a aparência de transações legítimas, mesmo que o gado não exista ou exista apenas parcialmente.
Simulação de vendas: O criminoso simula a venda do gado fictício, gerando notas fiscais que justificam a entrada de dinheiro ilícito no sistema financeiro. O “lucro” da venda é declarado como renda legítima, “esquentando” o dinheiro sujo. Em alguns casos, o gado pode ser transferido para fazendas regulares ou misturado com rebanhos legais antes de ser vendido a frigoríficos, dificultando o rastreamento.
Subfaturamento ou superfaturamento: Outra variação é subfaturar custos ou superfaturar lucros nas transações reais, ou fictícias, criando espaço para inserir dinheiro ilícito como parte do “lucro” declarado.
A participação do Primeiro Comando da Capital (PCC), no esquema, não está descartada. Em maio de 2025, uma operação da Polícia Civil do Rio de Janeiro e de São Paulo desmantelou uma rede de lavagem de dinheiro fruto de uma aliança entre o CV e do PCC que girou R$ 6 bilhões em um ano. As operações criminosas no Acre no Amazonas podem ser fruto da mesma aliança.
Atuação do ICMBio
A atuação do Instituto Chico Mendes de Biodiversidade em áreas do Acre e as adjacentes no Amazonas, como em Boca do Acre e Lábrea, foram gatilhos importantes para disparar a investigação, o que explica a hostilidade com que os agentes são tratados.
Segundo uma fonte, foi a partir das investigações sobre desmatamento e das verificações documentais relacionadas a crimes ambientais que notaram-se discrepâncias entre documentos e aquilo que era visto no campo. Documentos relatam números de cabeças de gado em locais onde os animais não eram vistos pelos agentes, o que embasou as investigações da PF. Como o órgão de mais forte atuação nessas regiões é o ICMBio, ficou claro para os contraventores a fonte da denúncia.
O ac24horas teve acesso com exclusividade a um áudio onde pistoleiros são convocados para reagir contra o ICMBio:
“Estamos passando por um momento muito difícil, por causa desses amaldiçoados que estão vindo aí. Do jeito que estão se unindo pra vir acabar com nós [sic], convoco todos vocês que tem coragem, que seja homem, vamos enfrentar esses amaldiçoados. Se for preciso derrubar a ponte, vamos derrubar. Convoco você fazendeiro, pecuarista, dono de serraria, você que é pistoleiro e o caralho a quatro, quem tiver disposto pode ir no meu privado pra nós enfrentar esses cara [sic]. Já estamos fudido [sic], eles não tem dó de ninguém, se for preciso dar minha vida pode contar comigo. Vamos partir pra cima. Daqui pra eu morrer quero ver a Marina Silva sendo enterrada dentro de uma caixa de fósforo”, diz um homem, que não foi identificado.
Uma tentativa de atentado a agentes do ICMBio, registrado no último domingo (15), na Reserva Extrativista Chico Mendes, deixou claro o nível de perigo das operações de combate aos crimes identificados. Estradas foram bloqueadas com fogo; pontes destruídas e cercas cortadas. De acordo com o ICMBio, houve também uma tentativa de incêndio no acampamento utilizado por sua equipe de fiscalização. Três criminosos foram presos em flagrante.
Ameaça do Comando Vermelho
Na madrugada da última terça-feira (17), criminosos arrombaram um frigorífico, em Brasileia, no interior do Acre, onde gado apreendido de áreas embargadas estão sendo abatidos. Os animais foram soltos à esmo. Um dia depois, na quarta-feira (18), um homem que se identificou como integrante do Comando Vermelho fez ameaças de morte em nome da organização criminosa ao dono do frigorífico.
“Se tu matar o gado do cara e não devolver pro dono, a polícia não vai te proteger a vida toda não, bicho, tá ligado? Nós é mundo todo, pô [sic] . Nossa família é grande, nós é o Comando Vermelho [sic]. Só tô te falando, irmão. Pega a visão. Não deixem ninguém atirar mais nenhuma pistola na cabeça do gado do cara, irmão. Porque o cara tá morrendo e infartando nos hospitais por aí, porque o gado é dele, irmão. Ele trabalhou a vida toda pra construir, tá ligado? E o Estado foi lá, meteu a mão, levou pra vocês e vocês tão matando. Então nós vamos fazer igual com vocês, mano. Nós vamos entrar e nós vamos metralhar tudo, porra. Tá ligado?”, disse no áudio.
Já nesta quinta-feira (19), o mesmo homem que fez ameaças em nome do Comando Vermelho se retratou, e disse não representar a facção.
“Eu meti aí a organização do Comando Vermelho no meio. E ele não tem nada a ver, eu falei isso porque eu tava de cabeça quente, entendeu? O Comando Vermelho não tem nada a ver com isso. Quero deixar bem claro aqui que o Comando Vermelho não tem nada a ver com isso, entendeu? Eu usei isso com a cabeça quente, tudo certo? O problema é o Estado, que é o opressor”, afirmou.
O produtor rural José Augusto Pinheiro, um dos porta-vozes do movimento que protesta contra as ações do ICMBio, IBAMA e PF nas áreas embargadas, procurado pela reportagem, disse não ter ciência da participação de produtores rurais nos esquemas criminosos relatados nesta matéria.
A Superintendência da Polícia Federal no Acre foi procurada para falar sobre o assunto, mas não se manifestou até o fechamento desta matéria.
Fonte: AC24horas