Joel Elias
A vastidão territorial brasileira, que frequentemente nos enche de orgulho em discursos oficiais e representações internacionais, esconde uma realidade brutal que poucos ousam enfrentar com a seriedade necessária. Enquanto nos vangloriamos de nossas riquezas naturais e da exuberância da maior floresta tropical do planeta, uma guerra silenciosa se desenrola na Amazônia e em diversas regiões rurais do país, cobrando um preço em vidas humanas que, quando contabilizado ao longo dos anos, supera muitos dos conflitos armados que dominam as manchetes internacionais. O paradoxo é evidente e doloroso: um país com 8,5 milhões de quilômetros quadrados, que poderia alimentar meio mundo com sua capacidade produtiva, ainda não conseguiu resolver suas questões fundiárias básicas, transformando a terra — que deveria ser fonte de subsistência e desenvolvimento — em palco de disputas sangrentas que se arrastam por gerações e perpetuam ciclos de miséria, violência e desigualdade social que mancham nossa história republicana e desafiam qualquer noção de justiça social que possamos almejar como nação moderna.
A complexidade da questão fundiária brasileira não pode ser reduzida a simplificações ideológicas ou narrativas maniqueístas que apenas servem para polarizar o debate e afastar as possibilidades de solução. Trata-se de uma problemática multifacetada, cujas raízes remontam ao período colonial, quando a distribuição de terras seguia critérios de favorecimento político e econômico, sem qualquer preocupação com a justiça social ou a sustentabilidade ambiental. Este legado histórico manifesta-se hoje na forma de uma intrincada teia de irregularidades, sobreposições de títulos, grilagem institucionalizada e conflitos de interesses que paralisam os processos de regularização fundiária e alimentam um ciclo aparentemente interminável de disputa e violência. Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), apenas em 2023, foram registrados 1.724 conflitos no campo brasileiro, com 31 assassinatos diretamente relacionados a disputas agrárias — números que, embora alarmantes, provavelmente subestimam a real dimensão do problema, considerando as dificuldades de documentação e denúncia em regiões remotas da Amazônia, onde o alcance do Estado é precário e a lei que frequentemente prevalece é a do mais forte, ou mais precisamente, a do que possui mais armas e capangas à sua disposição.
O episódio de Corumbiara, ocorrido em agosto de 1995, permanece como um símbolo emblemático da brutalidade que caracteriza os conflitos agrários brasileiros. Naquele fatídico dia, o que deveria ter sido uma ação de reintegração de posse se transformou em um massacre que resultou na morte de 15 pessoas, incluindo uma criança de nove anos, e deixou dezenas de feridos entre os sem-terra que ocupavam a fazenda Santa Elina. Quase três décadas depois, centenas de famílias daquela mesma região continuam em situação de limbo jurídico, sem acesso a crédito, assistência técnica ou programas governamentais que poderiam promover seu desenvolvimento. Este não é um caso isolado, mas um padrão que se repete em diferentes pontos da Amazônia Legal, como evidenciado pelos conflitos como o de Anapu (PA), onde a missionária Dorothy Stang foi assassinada em 2005, ou na região do sul do Amazonas, onde o avanço da fronteira agrícola tem intensificado as disputas por terra e recursos naturais. De acordo com o Observatório da Violência Agrária e Ambiental, entre 1985 e 2023, mais de 1.900 pessoas foram assassinadas em conflitos no campo no Brasil, uma estatística que supera as baixas de muitos conflitos armados internacionais no mesmo período, mas que raramente recebe a mesma atenção midiática ou indignação pública.
A morosidade do poder público em enfrentar esta questão não pode ser atribuída apenas a limitações técnicas ou orçamentárias, mas revela uma hierarquização de prioridades políticas que sistematicamente relegam as populações rurais vulneráveis — como agricultores familiares, comunidades tradicionais, quilombolas e indígenas — a uma condição de cidadãos de segunda classe, cujos direitos fundamentais podem ser indefinidamente postergados em nome de interesses econômicos mais imediatos ou politicamente rentáveis. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), principal órgão responsável pela política fundiária nacional, opera historicamente com orçamentos insuficientes, quadros técnicos desfalcados e sob pressões políticas contraditórias que comprometem sua eficiência e credibilidade. A título de comparação, enquanto o orçamento da reforma agrária e regularização fundiária minguou sistematicamente nas últimas duas décadas, os subsídios e incentivos fiscais ao agronegócio exportador cresceram exponencialmente, revelando não uma incapacidade estatal, mas uma escolha deliberada de modelo de desenvolvimento rural que privilegia a concentração fundiária e a produção de commodities em larga escala em detrimento da distribuição justa da terra e do fortalecimento da agricultura familiar, responsável por mais de 70% dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros.
A insegurança jurídica que aflige milhares de produtores rurais na Amazônia e em outras regiões brasileiras constitui um dos principais entraves ao desenvolvimento sustentável do país e à pacificação do campo. Sem título de propriedade regularizado, esses agricultores não podem acessar crédito bancário, participar de programas governamentais de assistência técnica ou investir na melhoria de suas propriedades com a segurança necessária. Estabelece-se, assim, um círculo vicioso de precariedade e estagnação econômica que alimenta tensões sociais e propicia o surgimento de conflitos violentos. Paradoxalmente, esta mesma insegurança jurídica favorece a atuação de grileiros e especuladores que, valendo-se de falhas nos sistemas de registro e fiscalização, apropriam-se ilegalmente de terras públicas, frequentemente com o uso da violência e da intimidação contra comunidades tradicionais e pequenos agricultores. Estima-se que apenas na Amazônia Legal existam cerca de 40 milhões de hectares de terras públicas não destinadas, uma área maior que países inteiros, que permanece vulnerável à grilagem e à exploração predatória de recursos naturais justamente pela ausência de uma política fundiária efetiva e transparente.
A dimensão ambiental da questão fundiária amazônica não pode ser dissociada de sua dimensão social e econômica. Diversos estudos têm demonstrado que a regularização fundiária, quando implementada de forma criteriosa e associada a programas de assistência técnica e incentivo à produção sustentável, contribui significativamente para a redução do desmatamento e para a preservação da biodiversidade. Comunidades com direitos territoriais reconhecidos e apoio para desenvolver práticas produtivas compatíveis com a conservação ambiental tendem a atuar como guardiãs efetivas da floresta, contrariando a falsa dicotomia frequentemente propagada entre preservação ambiental e desenvolvimento econômico. O desafio, portanto, não é escolher entre proteger a floresta ou promover o desenvolvimento das populações que nela habitam, mas construir um modelo de ocupação territorial que integre estas dimensões de forma harmoniosa e sustentável, reconhecendo o valor insubstituível da sociobiodiversidade amazônica e o direito das populações locais a condições dignas de vida e trabalho.
Quando comparamos os números da violência no campo brasileiro com conflitos internacionais amplamente noticiados, como a guerra na Ucrânia, no Leste Europeu ou em Gaza, no Oriente Médio, deparamo-nos com uma estatística perturbadora: ao longo dos últimos 30 anos, os conflitos agrários brasileiros foram responsáveis por mais mortes do que muitos conflitos armados oficialmente reconhecidos. Somados aos homicídios urbanos e acidentes de trânsito, o Brasil perde anualmente mais de 50 mil cidadãos para diferentes formas de violência, um genocídio silencioso que parece não sensibilizar suficientemente a opinião pública ou mobilizar respostas políticas à altura do problema. Esta naturalização da violência no campo reflete um padrão histórico de desvalorização da vida de determinados segmentos da população brasileira, especialmente aqueles mais afastados dos centros de poder econômico e político, e demanda uma profunda reflexão sobre os fundamentos éticos e democráticos de nossa sociedade.
O momento atual exige uma abordagem que transcenda os ciclos políticos e as disputas partidárias, reconhecendo a questão fundiária como um desafio de Estado que requer compromissos de longo prazo e arranjos institucionais capazes de resistir às mudanças de governo e às pressões conjunturais. A reforma agrária, longe de ser uma pauta ideológica superada, como alguns tentam caracterizá-la, permanece como um imperativo de justiça social e desenvolvimento econômico em um país que ainda mantém índices de concentração fundiária comparáveis aos do período colonial. Segundo o Censo Agropecuário de 2017, menos de 1% dos estabelecimentos agrícolas brasileiros detém quase 50% das terras agriculturáveis do país, enquanto milhões de trabalhadores rurais permanecem sem acesso à terra ou confinados em minifúndios insuficientes para garantir sua subsistência. Esta distorção estrutural, além de alimentar conflitos e perpetuar desigualdades, compromete o potencial produtivo do país e retarda o desenvolvimento de um setor agrícola verdadeiramente diversificado, resiliente e adaptado às diferentes vocações regionais e aos desafios climáticos contemporâneos.
A solução para a questão fundiária brasileira passa necessariamente por uma abordagem multidimensional que inclua não apenas a regularização dos títulos de propriedade, mas também um programa abrangente de desenvolvimento rural que contemple investimentos em infraestrutura, assistência técnica, acesso a mercados e serviços públicos básicos nas áreas rurais. A experiência de países que conseguiram reduzir significativamente seus conflitos agrários, como o México pós-reforma agrária ou a África do Sul pós-apartheid, demonstra que o sucesso das políticas de distribuição e regularização fundiária está diretamente relacionado à sua integração com estratégias mais amplas de desenvolvimento territorial e inclusão socioeconômica. No caso específico da Amazônia, este desafio se reveste de complexidade adicional pela necessidade de compatibilizar a segurança jurídica dos produtores rurais com a proteção dos direitos territoriais indígenas e tradicionais e a conservação do patrimônio ambiental, em um contexto de pressões econômicas crescentes e mudanças climáticas que ameaçam a própria integridade do bioma.
O Brasil encontra-se, portanto, diante de uma encruzilhada histórica no que diz respeito à sua questão fundiária. Perpetuar a atual política de ações pontuais e desarticuladas, frequentemente motivadas mais por crises e emergências do que por planejamento estratégico, significa condenar novas gerações aos mesmos ciclos de violência e desigualdade que têm caracterizado nossa história rural. Por outro lado, assumir o desafio de construir uma política fundiária abrangente, transparente e orientada por princípios de justiça social e sustentabilidade ambiental pode representar um divisor de águas na trajetória de desenvolvimento do país, contribuindo decisivamente para a pacificação do campo, a redução das desigualdades regionais e a consolidação de um modelo produtivo que concilie eficiência econômica, equidade social e responsabilidade ambiental. Esta escolha, que transcende em muito os aspectos técnicos e burocráticos da regularização fundiária, reflete fundamentalmente o tipo de sociedade que desejamos construir e o legado que pretendemos deixar para as futuras gerações de brasileiros.
O autor é jornalista e especialista no tema